Publicado em 1915 no jornal Correio da Noite. “Não as Matem” É um verdadeiro tapa na cara da sociedade machista e patriarcal do início do século vinte. Veja alguns trechos que resumem a crítica de Lima Barreto.
- “Um ladrão é menos culpado que um assassino de adúltera!”.
- “Durante o sexo, a mulher tem direito ao prazer”.
- “Não existe defesa de honra”.
Conseguiu entender o porquê dessa obra ser considerada a frente de seu tempo?
-Não era nada comum falar de feminicídio nesse recorte histórico. Muito menos defender os direitos das mulheres.
Mas, Vítor, por quê o PAS 3 e muitos outros vestibulares estão cobrando esse escritor?
– Caro leitor, o Lima Barreto, apesar de ter textos geniais, não foi reconhecido como grande autor em vida. Principalmente, por ser negro e cirúrgico para críticar sociedade urbana carioca, como será aprofundado posteriormente. Então, a tendência é retomar esse autores que foram silenciados na história da literatura.
Peço que leia a obra na íntegra antes de ir para a análise, para entender os porquês dessa obra ser considerada atemporal.

Obra
Não as matem
Lima Barreto
1Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même2, sobre a mulher.
O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha veio a morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.
Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.
Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.
Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão. O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.
Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.
De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?
Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.
Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação. O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.
Deixem as mulheres amar à vontade.
Não as matem, pelo amor de Deus!
Autoria
Nascido em 1881 no Rio de janeiro, Lima Barreto foi um dos principais escritores do Pré-modernismo no Brasil. Durante sua trajetória, sofreu uma série de traumas que formaram a sua visão assertiva sobre a sociedade carioca urbana. Vale destacar alguns acontecimentos essenciais para a compreensão da visão de mundo do autor.
O primeiro, é o fato de ele ser negro em um país que só aboliu a escravatura em 1888. Fator decisivo para ele ter sido negado nas duas primeiras vezes que tentou ingressar na Academia Brasileira de Artes. Um fato curioso é que na terceira e última vez, ele mesmo retirou sua candidatura, talvez por entender como sua sociedade funcionava…
Outra característica interessante, é que seu pai era tipógrafo o que facilitou o contato inicial com o âmbito jornalístico no qual ele iria exercer o cargo de funcionário público posteriormente. Então, mesmo sendo totalmente jogado para escanteio por causa de suas ideias e críticas revolucionárias para época, Barreto conseguiu, por meio de folhetins, publicar no Jornal suas grandiosas obras, com destaque para “Triste fim do Policarpo Quaresma”. Recomento que leia.
Por fim, destaca-se que problemas pscicológicos acompanharam boa parte da vida do nosso querido autor. O vício que tinha em beber, que foi herdado de seu pai, era degradante para saúde dele, de tal modo que foi o motivo de diversas internações em hospícios, como chamado à época. Nada humanizado como os “Centros de Reabilitação” de hoje. Logo, o álcool ser sua forma de fugir da realidade revela a rejeição que Lima Barreto sofreu em vida
Estrutura
A obra em questão é escrita em forma de crônica – texto curto e de linguagem acessível. Normalmente, são ótimas escolhas para os jornais, como foi o caso. pois atingem muitas pessoas de níveis variados de conhecimento. Esse gênero é estruturado da seguinte forma.
Começa por uma situação cotidiana que se desdobra em uma reflexão por meio de um gatilho textual. No caso de “Não as Matem” o contexto cotidiano é o assassinato de ex-noivas! Percebe a problemática da situação? Não poderia ser pior.
O feminicídio, que, aliás, não tinha esse nome na época, era tão comum no contexto de casamentos arranjados e por interesses que essa foi a temática escolhida para a crônica! E olha que estamos falando de só 110 anos atrás, é provável que seu bisavavô tenha participado dessa palhaçada!
E mais, esse tipo de união arranjada com o seu futuro assassino é tão atual que o PAS 3 escolheu essa obra. Quero que pense sobre isso.
Atenção, tenho uma dica, você que vai fazer ENEM. Aprofunde seu estudo sobre as crônicas, por quê é um gênero recorrente na prova, e na redação de vários outros vestibulares.
Contexto
Estamos em 1915, um limbo entre as escolas literárias do século dezenove e o modernismo inaugurado em 1922. Ou seja, essa obra é pré-modernista. Entretanto, eu insisto, isso é um período histórico, não é escola literária. Assim, é necessário entender como esse autor vai romper com as ideias pretéritas e introduzir novas.
Nesse cenário, percebemos que a crônica de Barreto vai bizarramente contra a alienação social do Parnasianismo. Vale lembrar que essa escola lembrar que essa corrente tinha um lema chamado Arte pela arte, ou seja, deixamos de lado pautas importantes como preceitos e desigualdade para endeusar a beleza de se fazer poesia. Usava se uma estrutura rígida com preferência aos sonetos decassílabos e blá blá blá…
Agora é diferente, Vamos justamente ir pela via contrária. Um olhar clínico para os problemas da época com uma linguagem fácil e objetiva. Sem enfoque na burguesia, como foi o caso do Realismo ou como a doideira que foi os “Romances de Tese” – O Naturalismo. Agora chegou hora de incomodar de verdade e falar o que tinha que ser dito com uma linguagem mais acessível.
Análise
O tema central é o feminicídio e a obra inteira gira em torno disso. Começa relatando algo pesado, porém rotineiro. Uma série de casos de maridos que assassinam suas ex noivas ou namoradas. Cada um tem sua razão, mas o fim é sempre o mesmo. Depois, Barreto compara esses criminosos com os ladrões que apesar de roubarem poupam a vida se conseguirem o dinheiro.
O texto está em segunda pessoa